Que facilidade vocês tem para se ferir!

Que facilidade vocês tem para se ferir!
A frase não era na sua direção. Mas ecoou pela sala e a atingiu. Sua voz embargou, sua tez enrubesceu, seus olhos marejaram e então se levantou. Ajeitou indelicadamente os talheres no prato fazendo muito barulho, empurrou ainda mais a cadeira para musicar com o chão e começou a praguejar. Ouvia-se "calma, calma" entre as maldições. Mas ela não ouvia. Não ela! Maldizia mais ainda! Normalmente numa discussão quando uma pessoa ofendida se ausenta espera-se que vá respirar, coloque a espinha no lugar e volte para poder dialogar. Mas não ela. Ela não! Sua mente foi longe, bem longe, nas entranhas do divino que poderia ser chamado de inferno. Um inferno infantil, de criança sem pirulito no shopping, para desespero dos pais. Ela voltou à infância, ao colo da mãe, ao colo tão desejado e não suprido, culpou-a pela sua falta de feminilidade tão desejada e cultivada. Ela havia se tornado um falo imponente, defensivo e amedrontador. Tinha tanta raiva acumulada despertada por aquela frase que agarrou uma pedra pesada e atirou na direção do autor. Entre seus gritos lancinantes de dor e desespero os vizinhos se assomaram nas janelas. Era um furor uterino. Uma dor de não ser aceita como é. Ficava cada vez pior. Ninguém poderia detê-la. Não nessa hora. Não a ela! A voz tentava dar corpo a uma dor irrepresentável. Os vizinhos desceram dos edifícios e foram para a rua. Um espetáculo perfeito. Sabe-se que a intenção não era essa mas o resultado não foi tão ruim assim. A dor era real mas o narcisismo exagerado. Perde-se totalmente o pudor, a vergonha, a moral. Rígida, ela tinha a ilusão de não estar perdendo nada. Não ela! A família, objeto e causa de sua dor traumática, essa sim estava tendo a certeza de um ataque mais que histérico. Mas dizem que os espetáculos histéricos são uma tentativa de auto-cura. Sim, pois somente querer curar-se é a solução. Porém para querer curar-se é necessário reconhecer-se doente. Doente precisando de ajuda. Mas ela não quer a da família. Não ela! Da família ela só quer carinho e compreensão. Coisa que eles tampouco estão preparados e seguros para ofertar. Da família ela quer distãncia. Da família ela quer compreensão e apoio distantes. Distantes, bem longe mesmo, porque eles falam muito e julgam muito e não a aceitam muito e não entendem muito de quase nada nesta vida. São favelados, pobres de espírito, sem universidade e de pouca leitura. Ela esquece suas origens, renega sua genética. Sim, percebe-se uma tentativa de amá-los, de fato se percebe um esforço. Mas ela não consegue. Não ela.

"Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas:
- assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas."

Amor fati (amor ao destino): seja este, doravante, o meu amor." Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que minha única negação seja ‘desviar o olhar’! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia apenas alguém que diz sim."

A Gaia Ciência (em alemão : Die fröhliche Wissenschaft) é o último trabalho da fase positiva de Nietsche.
5 Responses
  1. um texto belo e complexo no sentido de assumir que coisas podem incomodar mesmo não sendo ideal que elas incomodem...

    quanto a intolerância que a família causa, é universal! não somos nada para os nossos e os nossos jamais nos enxergam com devido respeito, talvez alguns tentem e mantenham a mesa cheia no natal...


    um texto forte e muito bem escrito!

    um beijo.


  2. Anônimo Says:

    Impressionante o resultado obtido a partir das imagens. Superlativo o blog!!!



  3. Um texto bem conseguido.
    Gostei do tecer das palavras.


  4. boyaci Says:

    Impressionante o resultado obtido a partir das imagens. Superlativo o blog!!!